O cão Julinho, nosso mais novo resgatado, estava abandonado na rua, tremendo e mal conseguindo se levantar, ao que uma pessoa, mesmo assim, colocou um saquinho de ração na frente dele, certamente pra se sentir melhor consigo mesma, o que foi no mínimo patético, visto que o cão nem se levantava. Fomos então presenteadas com essa crítica maravilhosa do amigo Roberto:
JULINHO
RBdC – 8.2.2011
É motivo de chacota ao comportamento humano uma foto em circulação, na internet, na qual um cãozinho faminto, mel com focinho neve, está deitado com as costas apoiadas no meio-fio imundo, como sobra de um caminhão com mudança, indiferente ao pacote de ração à sua frente. O pouco-caso com a amostra-grátis é visível, apesar do seu estado famélico evidenciado na posição fetal em que se encontra, provável reflexo do castigo das dores da fome e da sede. A troça surge com a indagação: por que alguém ofereceria ração a um animal faminto numa embalagem lacrada? Ora, pitombas, a inteligência humana às vezes vai tão longe que se torna difícil enxergar, e quem sabe não seja este um caso exemplar. Imaginemos.
A boa alma mora no terceiro andar de um prédio residencial, abre a janela para apreciar a poluição na cidade, respira fundo, aproveitando as partículas negras ejaculadas pelo cano de escapamento de uma perua escolar, agradece ao Supremo pela concessão de mais um precioso dia, e de repente olha para o asfalto devastado pelas últimas chuvas e vê o abandono sob a forma de um vira-lata. Lembra-se daquele pacotinho de ração que recebera na Feira de Adoção, no estacionamento do supermercado, sente as faíscas da iluminação Daquele que escreve certo por linhas tortas. Afinal, passara na Feira por mera curiosidade, porém, a moça tanto insistira que não lhe sobrou alternativa senão enfiar no bolso e agradecer a generosidade. Chegara, portanto, o momento de usar o presente numa boa ação de crédito contra os pecados de cada dia. Pensou, inicialmente, em lançar dali mesmo tal embalagem na direção do animal; logo desistiu, pois jamais acertaria o local esperado por ele e pelo cão, principalmente. Resolveu deixar para o momento da saída ao trabalho o depósito da salvação, nas proximidades do focinho do infeliz.
Assim pensado, assim cumprido. Aproximou-se com cuidado, preocupado com uma possível reação animalesca, assoviou umas três vezes, usou um Totó umas quatro vezes, tentou outros nomes - Tico, Bidu, Figura, óbvio, Mel, Fininho - e nada, o prostrado sequer levantava a cabeça. Bom, o trabalho o aguardava e o chefe odiava cachorros, o melhor era deixar a refeição por ali e se pirulitar. Ajeitou o pacotinho à distância de uns 10 centímetros da cabeça do ingrato, colocou um guardanapo azul e branco por cima e se foi, deixando a mesa posta.
Mais tarde, passava pelo local uma dessas protetoras a qualquer custo de animais, cães em particular, a Elisabete, que avistou o arranjo e foi até lá decidida a descobrir o que estava acontecendo com o cãozinho. Tomou-o nos braços, entre gemidos, com facilidade, pois leve como uma pena de sabiá, e o levou ao veterinário, que diagnosticou a preocupante desnutrição associada a uma desidratação saárica. Tomadas as devidas providências, ela chegou à conclusão de que o bicho tinha cara de Julinho e, sem contra-indicação, assim foi ele batizado na ficha canina. Na saída do consultório, em tom de brincadeira, o doutor esfregou o indicador no nariz do Julinho e comentou: se ele soubesse abrir aquela amostra-grátis não estaria nesse estado. Julinho levantou a cabeça, arregalou os olhos e falou: doutor, eu só não abri porque não saberia como usar aquele guardanapo. E voltou a se aninhar no colo da protetora.