Bicho humano versus outros bichos
Carolina Maria Ruy
Cães e gatos tem sido frequentemente abandonados à própria sorte, morrendo de fome e sujeito às intempéries, na represa Billings, em Grajaú, entre Interlagos e Diadema, em um vale entre o mato e a represas. A mata dificulta a saída do animal, estes só conseguem sair se alguém o resgatarem com cuidado. Gatos, mesmo que tenham sido abandonados, ainda conseguem subir em arvores e às vezes saem. Os cães não. Eles acabam se perdendo na pequena mata, morrendo de fome e doenças. Existem muitas carcaças de animais já mortos.
Infelizmente esta não é uma situação incomum. A violência contra os animais vem de longe. É sabido que muitos abandonam seus cães nas estradas, nas ruas, filhotes nos lixos, ou os matam por (mórbido) esporte. É sabido que gatos são sacrificados por superstições ou por puro sadismo, que pássaros são abatidos por diversão, que cavalos são explorados até caírem mortos pelas ruas, isso sem mencionar alguns tipos de violências institucionalizadas como Rodeios, Touradas, circos, parques aquáticos entre outros. Onde quer que você esteja não é preciso ir muito longe para constatar casos deste tipo.
O que surpreende é que, mesmo com estas velhas histórias dos maus tratos aos animais, mesmo com todo mundo sabendo desta triste realidade, muitos ainda insistem em afirmar que o animal é o vilão e a raça humana, genérica e abstratamente, é a vítima.
A bola da vez é a lei que quer “criminalizar” o cão da raça Pit Bull. Ora, em primeiro lugar se quiséssemos eliminar todo tipo de sintoma de nossa sociedade neurótica, entraríamos em um esquema obsessivo de condenações e extinções. Criminalizar um cachorro é esconder uma triste realidade de violência e negligência social. É evidente que o comportamento de qualquer animal doméstico é reflexo de sua criação, de sua relação com seus responsáveis. Exterminar o Pit Bull não acabará com casos de ataques de animais às pessoas. Se exterminarmos todos os cachorros existentes no mundo, os sádicos se valerão dos gatos, e depois dos coelhos até, quando todos os animais forem perversamente condenados, o sádico usará seu próprio corpo para concretizar sua ganância pela dor e pelo sofrimento.
A vítima destes casos são duas – aquele que sofreu o ataque e o animal que, subvertido de sua natureza original, expressou um comportamento de um ser humano que o manipulou para isso. Um animal que expressa violência reflete a violência que ele mesmo sofreu. Só que nossa cultura antropocêntrica não nos deixa ver os animais, bem como o conjunto da natureza, como seres dotados de autonomia, com dinâmicas e necessidades próprias. A cultura antropocêntrica, que, grosso modo, entende o ser humano como centro do universo, nos impede de entender que o ser humano existe ao lado, e não acima, dos outros seres da natureza. Se o nosso grande diferencial é a racionalidade, a consciência, a criatividade e a capacidade de produzir coisas e constituir uma complexa sociedade, cabem a nós, humanos, nos ajustar da melhor forma no mundo e buscar o melhor caminho nesta vida.
Entretanto, as construções humanas, as edificações, as cidades, acabaram com os espaços para vivência dos animais. A competitividade imposta pela formação socioeconômica e pelo espírito do capitalismo, nos fez mais insensíveis, menos acolhedores, tendemos a projetar nos animais nossa própria deformação moral. Nos vemos, agora, diante da responsabilidade de absorver e administrar a convivência com animais. Sozinhos eles não podem se adaptar nos espaços criados por nós humanos.
O triste quadro da represa Billings revela o lado mais atrasado e obscuro da humanidade. Uma protetora que esteve no local relatou três casos dramáticos: o de uma cachorrinha que viu seu dono se suicidar na represa e permaneceu lá deitada esperando por ele, o de uma cachorra da raça cocker com tumor no ouvido e o de um pequeno basset com o olho pendurado que, segundo pessoas do local, foi atirado do carro em velocidade. Existem também cachorras no cio propensas a se reproduzirem neste cenário desolador.
Por lá também existem pessoas boas e que amam os animais, mas não tem condições de cuidar deles. Foram estas boas almas que chamaram a atenção para o caso e pedem ajuda. Alguns animais já foram resgatados. Mas as protetoras não dão conta, pois as pessoas não param de abandoná-los no local.
Cabe dizer o óbvio. Criar um animal requer compromisso, afeto e responsabilidade. Compromisso, afeto e responsabilidade: conceitos essenciais que transformaram o bicho homem na raça humana.
Carolina Maria Ruy
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